sábado, 26 de dezembro de 2015

A VÉSPERA

A VÉSPERA

EXTERIOR. NOITE. PRAIA DE PONTA VERDE.

FOTÓGRAFA sai da praia, com uma câmera na mão, com olhar decepcionado. Encontra GUARDADOR sentado perto do carro.

FOTÓGRAFA: A lua hoje nem se amostrou, né?!
GUARDADOR: Oxe, daqui a pouco ela sai.
FOTÓGRAFA: Ela já deve ter saído... véspera de lua cheia, deve ter nascido por volta de 18 h. Como já são mais de 19 h, com certeza ela já tá no alto. Num é ela ali não?
GUARDADOR: Oxe, e num conhece mais a lua não é? Aquilo é uma nuvem.
FOTÓGRAFA: Num tá c'a'peste que seja uma nuvem! Desde quando nuvem tem brilho próprio?
GUARDADOR: Oxe, moça, num fale essa palavra não!
FOTÓGRAFA: Oxe, que palavra?
GUARDADOR: Essa!
FOTÓGRAFA: Qual? C'a'peste?
GUARDADOR: Isso! Uma palavra do diabo pra falar da lua, que é de Deus.
FOTÓGRAFA: Mas quem inventou essa palavra num foi o homem?
GUARDADOR: Foi!
FOTÓGRAFA: E depois que ele inventou, Deus desceu da terra pra dizer que era boa ou ruim? Não, né? Então foi o homem que inventou "c'a'peste" e foi o homem que disse que "c'a'peste" é ruim, e Deus não tem nada a ver com isso!
GUARDADOR: Mas Deus fala com os homens...
FOTÓGRAFA: E foi? Quando?
GUARDADOR: Deus falou com Abraão...
FOTÓGRAFA: E depois só falou com uns poucos, mandou seu filho falar por ele, e depois não falou com mais ninguém. Ficou de mal. Aqui no Brasil mesmo, ele só vem passar férias, não quer nem conversa. Eu mesma se fosse Deus também só vinha pra cá passar férias.
GUARDADOR: Oxe, moça, a senhora tem cada história...
FOTÓGRAFA: O povo inventa Natal, Papai Noel, Congresso Nacional, um bocado de lei louca aprovada na calada da noite, aumento pra seu próprio bolso e redução de direitos de todos os outros, e quem inventa histórias sou eu? Eu não sei nem o que vou publicar na crônica de domingo que prometi pra o Da Rosa!
GUARDADOR: Oxe, moça, como é?
FOTÓGRAFA: Agora olhe pra o céu. Aquela nuvem só é nuvem se Deus resolveu fazer uma rave no céu e colocou os holofotes ao contrário. Nuvem...! Esse povo vê é coisa... E depois quem inventa história sou eu... oxe...

sábado, 19 de dezembro de 2015

QUESTÃO DE PROVA

Marque um “V” quando o objeto do diálogo for algo virtual e “R” algo real:

 (  ) ECONOMIZE NO NATAL
Locutora de rádio: Antecipe suas compras de Natal no shopping Barra e economize!
Marcelo: Esse ano eu não participei de amigo secreto algum. Todo ano é a mesma coisa. Lá no pólo todo ano tinha no final do ano, eu sempre dava presente bom, e nunca ganhava o que prestasse. Ano passado eu dei um vinho caro e ganhei um cd de arrocha. No anterior dei um perfume e ganhei uma caixa de chocolate. Também com essa crise, a bolsa de valores em baixa, se o povo já me dava presente ruim, aí é que teria desculpa.
Mariana: Pra mim, Natal é dia 25. Só mais um dia no calendário. Assim eu economizo.

(   ) NOME SUJO
Ana Maria: Dra, o que eu faço? Minha vizinha pegou meu documento, falsificou minha identidade, fez cadastro na Natura e Avon e meu nome tá negativado por causa dessa desgraça. E ainda fica achando ruim, falando coisa, porque eu entrei na justiça. Peço a Deus que me perdoe, mas eu não tinha como limpar meu nome, e preciso de cartão pra comprar as coisas nesse fim de ano.
Marina: Quanto a seu nome, com o recesso e férias forenses, não deve ter decisão no processo em maio, no mínimo. Daqui até lá, comece a exercitar nem passar pela porta de banco, a viver sem cartão de crédito, a comprar tudo à vista. Vai ver como é libertador. Não tem um mal que não traga um bem. Sabe o cão? Pois foi ele que criou o banco. E quanto a sua vizinha, não é possível que você ainda esteja nessa de culpa. Daqui a pouco vai dizer que precisa fazer terapia pra lidar com isso. Tá bom de mudar esse seu lema de “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo” pra “amar a si mesma sobre todas as coisas e ao próximo se houver reciprocidade”. Sugiro começar a ligar o “LASQUE-SE” e será feliz!

(   ) MAYBE
Luciano: Essa música traz uma tranquilidade... Quem tá cantando?
Ana Maria: É Janes Joplin. Maybe. Morreu aos 27 anos, após se eternizar em melodias de puro sentimento condensado. Essa música é um pedido de perdão depois de ter feito algo que se arrependeu.
Luciano: Em falar em arrepender, você viu o caso do marido traído que se vingou expondo todos ao ridículo nas redes sociais?
Semírames Sé: Em meu livro de poesias recém lançado eu já defini: Traição: 1 – atitude comportamental negativa de um indivíduo que envolve outro indivíduo; pecado; 2 – necessidade básica do indivíduo que se envolve totalmente com a situação em que se encontra, independente da existência do outro.
Ana Maria: Cada um é um “maybe”: tem gente que prefere morrer depois de deixar uma música tranquila, outros, um vídeo ridículo. Cada um escolhe que personagem quer ser. Uns preferem viver na verdade, outros preferem deixar a alma em um canto e o corpo no outro. E aí terminam todos cantando: “Maybe, maybe, maybe...”

(  ) I LOVE MY DOG
Paulinho: Que lindo aquele cachorro!
Guiga: Amo cachorro. Na porta do meu quarto coloquei uma placa: I love my dog.
Paulinho: Qual a raça dele?
Guiga: Eu não tenho cachorro. Ri ri ri ri (risada curta, aguda e rápida). Eu moro um apartamento muito pequeno, seria uma malvadeza criar um cachorro lá. O coitado não iria ter vida alguma, só quando eu chegasse trabalho. Cachorro foi feito pra correr, viver livre, e não pra ficar numa gaiola. Mas tô trabalhando pra comprar uma casa e ter um cachorro.
Maria: Se você fosse promotor ou juiz na Bahia, com 15º salário em plena redução de direitos dos demais servidores públicos, seria mais fácil, mas com seu esse seu salário de professor...
Guiga: ah, mas eu tô trabalhando. Por enquanto, o salário já deu pra comprar a placa. Ri ri ri ri.

domingo, 13 de dezembro de 2015

FENOMENOLOGIA

(Faltou o circunflexo no "o")
No barco ancorado no Porto da Barra estava escrito seu nome:
D E U S P O R N O S

Fenomenologia da percepçao
(agora sobrou cedilha)

domingo, 6 de dezembro de 2015

INDEPENDENTEMENTE IMBECIL



“im.be.cil (cil) adj2g. s2g. 1. V. idiota (1). 2. V. tolo (1, 2 e 6). 3. Psiq. Diz-se de, ou aquele que sofre de imbelicilidade. [Pl.: -cis.]
Im.be.ci.li.da.de sf 1. Qualidade ou ato de imbecil. 2. Psiq. Retardo mental em que o nível intelectual do indivíduo não ultrapassa o de uma criança de 7 anos.”
(míni Aurélio, 7ª edição, Editora Positivo, 2008)

Às vezes me acho uma imbecil. Se imbecil é fazer imbecilidade, e imbecilidade é uma demonstração que o nível intelectual do indivíduo é de uma criança de menos de 7 anos, posso dizer que me comporto como uma criança perguntadeira de 5 anos, no máximo. Tudo quero saber o porquê. Percebo que a pessoa que responde “estou cumprindo ordens” geralmente também é um imbecil.
“As ideias dos homens são jogos de criança” (Heráclito).

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MENINA: Sr. Deputado, o senhor foi membro do movimento estudantil, estudou Direito, então me sinto confortável de conversar com o senhor, porque ao menos o senhor entende de lei. Por que, então, votar a favor de um projeto do líder do Executivo, se o senhor sabe que é inconstitucional?
DEPUTADO: Eu e mais alguns Deputados conversamos com o Governador, mas ele insiste no projeto de lei...
MENINA: Mas Deputado, eu pensei que na Constituição Federal estivesse escrito que os poderes são in-de-pen-den-tes entre si...
DEPUTADO (enfurecido): VOCÊ TEM QUE ENTENDER QUE EM POLÍTICA É DIFERENTE: NÓS SOMOS UM GRUPO, E O QUE O GRUPO DECIDE, A GENTE TEM QUE SEGUIR!
MENINA: (...)


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A MENINA ficou feliz por alguns instantes. Ela acreditou que ser sincera adianta alguma coisa.



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VIGILANTE DE UMA EMPRESA TERCEIRIZADA: Senhora, por favor, abra o banner que quero ver o conteúdo.
MENINA: Como assim? E dependendo do quê estiver escrito vocês vão barrar?
SENHORA: Deixe... é que ele pensa que estou junto aos professores protestando...
VIGILANTE DE UMA EMPRESA TERCEIRIZADA: Estou cumprindo ordens...
MENINA: Ordens de quem? Foi por que ato? Uma portaria? Uma circular? Cadê esse documento que pensa substituir a Constituição Federal, que garante a liberdade de manifestação de pensamento? Essa senhora tem o direito de entrar na chamada “Casa do Povo” com o banner dela e ela se responsabiliza pelo conteúdo! O que está vedado é o anonimato.
VIGILANTE DE UMA EMPRESA TERCEIRIZADA: Foi uma ordem verbal...
MENINA: Pois essa ordem verbal e nada é a mesma coisa. Você não tem autoridade alguma de decidir o que entra ou não. Isso é censura, e não podemos permitir.
SENHORA (após abrir o banner e mostrá-lo ao Vigilante de Uma Empresa Terceirizada): Satisfeito?
VIGILANTE DE UMA EMPRESA TERCEIRIZADA: (...)



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A MENINA ouviu que uns tais Deputados estão tocando o terror no país. Parece que querem destruir o povo brasileiro, envenenando sua comida com transgênicos e pesticidas ilegais no resto do mundo, e depois semeiam discórdia e julgamentos morais-religiosos para criar uma guerra interna entre os cidadãos envenenados. Ouviu também que só fazem permitir desmatamento e empresas cavarem nosso solo ou desviar nossos rios para espalhar desequilíbrio ecológico. A menina não entendia nada disso. Ensinaram na escola que representatividade (eita palavra grande!) era uma coisa assim ligada a “interesse do povo”. Ela dizia que criança quer é brincar como os índios, então os índios é que “representam”. Como uma criança, entendeu que tem dois grupinhos de um colégio maior que fica em Brasília (chamado Política Brasileira) e parece que estão brigando pela bola, pois um teve a bola a vida toda e, quando outros estavam jogando, resolveu tentar parar o jogo e pegar a bola de volta. Ficou sabendo que, quando os dois puxaram a bola, ela rasgou.
Imbecis.



quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

HABEAS CORPUS EM FAVOR DE GIULIETTA

EXMO(A) SR(A) DR(A) JUIZ(A)-LEITOR(A) DO SITE VIRTUALHADA


EU, MARTA DE OLIVEIRA TORRES, já qualificada nos presentes autos, venho, por intermédio dessa VIRTUALHADA, interpor um HABEAS CORPUS PREVENTIVO em favor de GIULIETTA, italiana, magrela dobrável e leve, sem placa, domiciliada em Salvador-BA, ainda não apresentada a esse Juízo, contra ato perpetrado pela autoridade pública ora informada, pelas razões de fato e direito que passa a expor:
Em 11 de julho do corrente ano, GIULIETTA saia pela 3ª vez naquela cidade para passear. GIULIETTA tinha medo de rodar pelas ruas de Salvador: nas duas únicas investidas nesses quase dois anos que residia na primeira capital do Brasil, em uma ela levou uma fechada de um ônibus e na outra levou uma queda. Nessa terceira, no entanto, GIULIETTA nem imaginava que voltaria para casa sem ver o sol se pôr.
Conforme narrado nos autos do inquérito nº 1432/2015, GIULIETTA estava passeando no Porto da Barra ao final da manhã daquele ensolarado dia de suposto inverno, deliciando-se com a brisa leve em seus pneus, apreciando as esparças nuvens que voavam sobre suas costas, quando, de repente, sofreu uma freada brusca. Em seguida, quando deu por si, estava sendo conduzida presa, acusada de crime de desacato.
Somente na presente data, 3/12/2015, GIULIETTA recebeu uma intimação deste Juízo e pediu para que eu lesse para ela, uma vez que ainda não aprendeu a falar português.
Expliquei para ela que assim afirma o inquérito: “que em nenhum momento o declarante agrediu a Sra. Marta, tendo ela sido conduzida no interior da viatura e sua bicicleta foi trazida no xadrez.”.

Em outra passagem, “ELA SE DIRIGIU A GUARNIÇAO COM VARIAS PALAVRAS DE BAIXO CALÃO,
COMO BABACA, IMBECIL, IDIOTA. E QUE ALEM DISSO ELA CALUNIOU OS POLICIAIS AFIRMANDO QUE OS MESMOS SÓ PRENDEM NEGROS, AO RECEBER VOZ DE PRISÃO SENTOU-SE NO BAR RECUSANDO A SER CONDUZIDA. RESISTINDO A PRISÃO O QUE FEZ AUMENTAR A TURBA, DIFICULTANDO A CONDUÇÃO DOS ELEMENTOS ATE A DELEGACIA, QUE APÓS INSISTIR A MESMA FOI CONDUZIDA NA GUARNIÇÃO DA POLICIA SEM A NECESSIDADE DE ALGEMAS, E NEM NO PRESIDIO DA VIATURA, VISTO QUE O PRESIDIO ESTAVA OCUPADO PELA BICICLETA DA MESMA.”

GIULIETTA soltou um ar por seus pneus quando a lembrei do episódio em que foi conduzida no presídio da viatura. Não ficou angustiada pela acusação. Ela me contou que lá na Itália os policiais não prendiam não. Eles matavam. Aí eu respondi que no Nordeste de Amaralina também.
Assustada, GIULIETTA suplicou-me para que a represente na audiência perante esse Juízo, informa que está com o pneu murcho e não está afim de sair de casa. Pediu para alegar em sua defesa: “A MINHA BUZINA ESTÁ QUEBRADA!”. Como, então, poderia ter falado qualquer verdade?

Por essa razão, Exmo(a) Sr(a) Juiz(a), peço encarecidamente, com fundamento na Constituição Federal, artigo quinto, inciso não sei lá das quantas, que APRECIE esse HABEAS CORPUS PREVENTIVO e conceda o TRANCAMENTO DA PRESENTE AÇÃO PENAL.

Atenciosamente,

Marta de Oliveira Torres
Escritora do blog Virtualhada

sábado, 28 de novembro de 2015

Crítica a Clarice


Conheci Clarice Lispector tardiamente, em um livro com coletânea de contos dado por uma colega de trabalho também de Maceió, também branca, também filha de pais trabalhadores que proporcionaram alguma condição de vida suficiente pra ter uma infância em uma casa tranquila e estudar no mesmo colégio que outras pessoas cujos pais já nasceram ricos e não precisavam se esforçar tanto pra pagar a mensalidade. Ela a apresentou como sendo uma escritora fabulosa, incrível, maravilhosa, encantadora, como o título falava, “de cabeceira”. De fato, ao ler alguns de seus contos, impressionou-me a forma como descrevia os sentimentos e sensações e fazia uma autópsia da alma humana. Identifiquei-me em várias passagens, numa que falava sobre um homem a enterrar um cão achado na rua pra espiar a culpa pelo abandono de seu antigo cão amado, ou outro conto em que refletia sobre um relógio, o tempo, Sveglia. Uma barata ou um cego vistos por uma dona de casa virariam páginas de profunda reflexão sobre a vida e existência daquelas personagens criadas por Clarice. Não imaginava, naquele momento, que eu poderia sentir alguma antipatia por essa escritora que também passou sua infância em Maceió. Até escrevi um conto inspirada em sua personagem Aurélia Nascimento, que nascera ao se despir das maquiagens sobrepostas à sua natureza. “Clarice Nascimento”, assim a homenagiei. Naquela época, eu descobria e amava Clarice Lispector.
No entanto, quando li uma seleção de crônicas de Clarice, surpreendi-me com uma incontrolável aversão a tudo o que via. Talvez seja justamente meu histórico de vida semelhante ao de Clarice que me causava tamanha agonia face a sua percepção da realidade: em uma maestral combinação de palavras, Clarice Lispector traçava o retrato de uma “classe média” mundial entretida em seus relacionamentos, universidades, necessidades mesquinhas, pra quem as empregadas despertam desconforto, os pedintes despertam no máximo caridade, a mulher casada-mãe se revela como uma obrigação tão natural que faz da escritora uma leitura obrigatória na literatura brasileira de destaque universal. Tudo isso, que cresci vivendo e achando único modo de ver o mundo, passaria como louvável não fosse pelo meu trabalho na Defensoria Pública. Não que na Defensoria Pública seja diferente: os selecionados por um concurso público são praticamente todos advindos de criações semelhantes a minha. Mas as histórias que escuto diariamente me fizeram enxergar um mundo além de Clarice, criada em Maceió, formada em Direito, frequentadora de casas com esculturas como as de Bruno Giorgi, com várias empregadas domésticas a servir, andando conduzida por choveres pelos bairros nobres das principais cidades do mundo.
Seria grande hipocrisia minha dizer que não sou constituída de Clarice. Apertou-me a garganta ao ler “As três experiências”, em que ela narra suas três razões de viver: amar os outros, escrever, criar seus filhos. Também sinto um profundo amor à vida, à escrita, e aos filhos do mundo e aos que nem ainda tenho. Não foi só o fato de ter crescido com o cheiro do mar verde de Maceió, uma discreta semelhança na aparência, e agora o vício do cigarro (orgânico) o que me liga à escritora naturalizada brasileira: a escrita como modo de expressar a ânsia de viver e a angústia do vivido também me acompanha desde tenra idade. No entanto, tenho várias ressalvas quanto aos relatos de Clarice, a ponto de ter terminado de ler suas crônicas não mais de forma prazerosa, mas quase que discutindo com a eterna escritora.
A começar por “Por detrás da devoção”, crônica louvada por Diogo Mainardi, ex-correspondente de uma revista tendenciosa que sustenta a filosofia de Leviatã como caminho pra a felicidade. Impressiona-me a maneira discriminatória com que a festejada escritora trata a empregada doméstica Aninha, descrita como incapaz de entender um livro seu, e a irônica surpresa porque teria a “renitente” utilizado a palavra “pueril”. Pior que o asco que me despertou ao ler a crônica, foi quando vi o comentário daquele escritor da Veja ao se referir à miséria dos nordestinos: “Trinta e três anos atrás, quando A hora da estrela foi escrito, ainda vivíamos num apartheid relativamente eficiente. Os miseráveis ficavam longe de nós, atormentando-nos apenas com o seu desamparo. De lá pra cá, eles se tornaram bem mais visíveis. Quebram os vidros dos nossos carros e roubam nossos rádios. E minha sobrinha ouvem a música que eles ouvem”.
Depois vem a absurda “Das vantagens de ser bobo”. E digo absurda porque só quem cresceu em um ambiente cristão como Clarice (e eu!) pode querer extrair alguma vantagem de ser passado pra trás. “Excesso de amor”, insiste a escritora. Perdoe-me, Clarice, mas essa de “perdoar setenta vezes sete” é história da carochinha pra manter os escravos sendo escravos, perdoando seus patrões de todas as humilhações enquanto espera morrer pra ir ao reino dos céus. Até porque a escritora “boba” não se revela nada “boba” quando uma senhora entra num táxi e pede pra que ela ceda a vez e deixe a idosa primeiro em sua casa porque tem um compromisso, episódio descrito em “Mal-estar de um anjo”. Vitoriosamente, Clarice nega a “bondade” exigida ao “anjo” e se despe de suas asas, afirmando que quer ser deixada primeiro e ponto final. A narrativa de Clarice revela, como o comentarista Joaquim Ferreira dos Santos adjetiva, duas “dondocas” que se encontram no banco de trás do carro em Copacabana, disputando o trajeto de um chofer em um dia de chuva. Ser bobo nem é tão bom assim, né, Clarice? Como diz meu professor Harildo Déda, “gentileza gera gente lesa”.
“O caso da caneta de ouro” e a valorização de uma caneta porque é feita desse metal (típica conduta de uma sociedade desprovida de consciência humana e que acumula riquezas fúteis e desnecessárias), combinada ao “As caridades odiosas” revelam o tacanho pensamento da classe média: a caneta deve ser objeto de desejo dos dois filhos (como um dos filhos não quis, despertou o estranhamento da autora e daí sua crônica), enquanto é incomodo que o “menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele”, humildemente, “poupe a bondade” de Clarice ao se contentar com só um doce dado de esmola.
Se Clarice não fosse branca e rica, escrever “Cem anos de perdão” seria uma apologia ao crime, pois não via problema algum entrar em casas alheias pra retirar uma simples rosa. Se ela fosse negra e estivesse com fome e entrasse pra pegar um resto de leite em uma lata jogada no lixo da casa de um dos palacetes que Clarice entrava com o coração palpitando, com certeza seria presa. E se não tivesse um Defensor Público, ficaria (fica) uns seis meses com o “coração palpitando” dentro de uma cela, um coração feito do mesmo sangue vermelho da escritora que alegremente conta sua experiência como algo que “foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas”. No Brasil, Clarice, se você fosse negra e pobre entrando em um palacete pra roubar rosas, não teria nem um único dia de perdão. E agora, nem se fosse uma jovem adolescente de 16 anos apaixonada por rosas. Esta seria esmagada como as pitangas que escorriam de suas mãos quando as apertava no afobamento de roubá-las do pomar da igreja.
Não vou nem me delongar na agonia que senti quando vi a crônica “Armando Nogueira, futebol e eu, a coitada”: coitada por que, Clarice? Porque é mulher e não entende de futebol? Coitado é de Armando que passa o tempo escrevendo sobre o entretenimento-de-massas-chamado-futebol e não consegue refletir sobre coisas tão naturais como o sentimento humano! Coitados de nós, homens e mulheres, que vivemos nessa dicotomia de “coisa de homem” x “coisa de mulher”. Coitada de você, Clarice, que como milhares de mulheres de sua geração tinha que tomar calmante pra conter a natureza humana, e precisa que seu filho diferencie “emoção” de “nervosismo”, como informa na crônica “Lição de filho”, de modo a poupar o medicamento quase que obrigatório pra as reprimidas mulheres pseudo-burguesas. Coitada da nossa sociedade que ao invés de refletir sobre as causas dos problemas sociais fica divagando sobre tantas futilidades.
Perdoe-me, Clarice, mas não a lerei mais. A não ser pra aprender a escrever, coisa que espero conseguir um dia. Por enquanto, não sou ninguém pra te criticar. Aliás, justamente pela minha insignificância, você não terá nem que me perdoar. Afinal, morta, já se tornou eterna, e quem sou eu pra diminuir o brilho de uma porta-voz desses valores tão comuns. Eu não sou ninguém. Eu ainda nem nasci.

(comentários ao livro “Clarice Lispector – Clarice na cabeceira – crônicas”, da editora Rocco)


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

ATENÇÃO, CLARICE NASCIMENTO!

“Atenção Clarice Nascimento! Última chamada para o voo 1609 com destino a São Paulo”

Da fila do banheiro feminino, Clarice percebeu que, se não abandonasse aquela espera necessária naquele exato momento, poderia perder sua viagem de volta pra casa. Se perdesse o voo, iria acabar postergando seu tão esperado encontro com seu canto, sua paz. O atraso no embarque pra o voo 1609 soava proposital: invadida por uma profunda solidão, Clarice sentia-se desejada quando ouvia seu nome ser falado pela comissária da empresa de viagem. “Sim, eles me aguardam, eles me esperam, eles chamam por mim”, pensou ao ouvir seu nome. “Atenção Clarice Nascimento! Última chamada...”
A sensação de ser desejada acalentava-lhe como pôr as frias mãos pra esquentar no bolso do casaco numa úmida tarde no inverno de São Paulo. Mas o pensamento denunciava que ela se fazia necessária ali imediatamente, não por sua história de vida, sua maneira de compartilhar sentimentos, de se revelar... Seu nome era chamado pra cumprir um destino: sentar na poltrona 22D. Todos a queriam ali pra que todos pudessem seguir. Todos os passageiros do voo 1609 concentrados em suas passagens, sentados em seus assentos numerados como um número de telefone celular.
Satisfeita, apresentou apressadamente seu bilhete, na esperança que não fosse exigido mostrar qualquer documento, possivelmente perdido em meio a tantos papéis em sua bolsa. “A identidade, por favor”, ordenava a Comissária. Mostrando o documento, refletia: “Sim, eu sou Clarice, será que a todo momento tenho que comprovar isso?”.
Dominada pela vontade de silenciar sua solidão, Clarice depositou sem ajuda sua pesada mochila no compartimento de bagagem, sentou na poltrona 22D, aguardou o comandante levantar voo e embalada pela turbulência como num berço, logo adormecera como um bebê.
Mas tal como sua avó lhe ensinara, deveria ter ido ao banheiro antes de sair, pra não interromper percursos a fim de liberar a água saudavelmente consumida com leve excesso. Sorte que estava na poltrona do corredor. Levantou-se, dirigiu-se ao banheiro do avião, que mal cabia seu 1,60 m de altura e o singelo curvar das formas de seus 53 kg.
Encontrou papel no piso de outras mãos não educadas jogadas fora de seu depósito convencional chamado lixeira. “Suportar a sujeira até vai, mas limpar sujeira alheia é demais. Mas e se alguém entrar depois e pensar que fui eu?” . Ainda assim, não valeria sua colaboração à organização do local, afinal seu papel ali era meramente de figuração num voo lotado de passageiros.
Foi quando estava deixando a água de seu corpo seguir outro destino que a porta se  abre e ela encara olhos claros fitando espantadamente sua posição, estupefatos ao se deparar com sua pessoa no banheiro de porta não trancada corretamente!
Aquele Comissário de Olhos Claros, ao empurrar aquela porta, não sabia que estaria a violar um momento de sublima intimidade de Clarice. Há tanto tempo considerava reservado os instantes de eliminar dejetos que nenhum familiar ou amigo presenciara tal cena. Com uma velocidade constrangida, Clarice puxou bruscamente a porta, mas não tinha como voltar pra juntar o que havia se rompido: aquele que seria um segredo seu tinha sido violado. Um total estranho presenciara seu momento de maior intimidade. Clarice sentia como se sua alma tivesse sido estuprada: se o que havia de mais recôndito em Clarice fora revelado pra um estranho, nada mais tinha por que ser segredo.
Clarice voltou pra seu assento com uma vontade de se abrir pra o mundo, de se exibir, de contar as suas histórias, e ficou pensando em todas as histórias que ela poderia contar, enquanto estava ali esperando o Comissário passar de novo pra ela olhar de novo nos olhos dele. Clarice escuta o barulhinho do carrinho vindo em sua direção e já começa a ficar nervosa: "é ele! Ele está vindo! Como será a reação dele? Será que ele vai me aprovar?".
E aí ficou naquela tensão. E aí ele chegou, ela olhou pra ele e percebeu que não era ele o comissário que tinha aberto a porta. Voltou a ficar tranquila, mas novamente pensando em todas as coisas que ela queria fazer pra se expandir e se mostrar pra o mundo.
Quando ela estava saindo, Clarice passou por ele, mas ele não olhou pra ela. Ele não a viu saindo e ela ficou sem saber qual foi a opinião dele diante daquele momento de tamanha intimidade dela.
Voltou pra casa com aquele questionamento de qual teria sido a reação dele. E aí passou pela Avenida Brasil, passou por uma concessionária, alguns bancos, uma clínica de estética, outros bancos, uma construtora, uma imobiliária, outras casas de luxo, salão de beleza, e foi chegando no seu prédio, subiu até o 14º andar, abriu a porta, estava sozinha em casa, entrou no banheiro, e trancou a porta.


(inspirada no conto "Ele me bebeu" do livro "A via crucis do corpo", de Clarice Lispector)


domingo, 6 de setembro de 2015

Independência

Algumas pessoas estão chateadas porque esqueci de felicitá-las em seus aniversários.
Perdão, estou distraída com o tempo. Só sei que dia é hoje porque amanhã é feriado.
Feriado de quê, mesmo?
Ah, da independência.
Independência de quê, mesmo?

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A ROSA-LILÁS E A FLOR COR DE ROSA

"Tenho uma doença: 'vejo a linguagem'" (Roland Barthes)

Ser viajante é observar os outros olhares do mundo refletidos no perfume das flores, na forma das casas, no sabor dos cafés, nos idiomas e conversas infindáveis.
Não ter uma câmera fotográfica é encontrar o papel. É bom também. Não tem como fotografar a sensação de velocidade extasiante ao descer uma escada rolante que sobe. Ou o esquentar do amargo café no corpo perfumado pela doce flor Rosa-Lilás que encontrei no jardim da Casa das Rosas. A flor não era rosa. A rosa era lilás.
Eu estava tão bem na foto, tomando meu café com cigarro orgânico, mas o indivíduo só viu beleza em seu selfie. Tudo bem, não o conheço mesmo.
As palavras me confundem. Às vezes esqueço se admiração é com i depois do d ou não. Mas a admiração não se confunde: só alcança o que é certo de acordo com myself.
É alegria poder sentar embaixo de uma árvore na Av. Paulista e saber que estou recebendo um pouco de oxigênio dessa princesa parada que abriga pássaros cantadores disputando a atenção dos tímpanos em meio a freios, portas abrindo e fechando, rádios com músicas estrangeiras passageiras. As árvores e os pássaros ficam.
Eu sigo me transformando como as xícaras que tintilam no bar, às vezes cheias de café, às vezes com água e sabão, às vezes com pano, às vezes com mão.
A maquinização e padronização do ser humano não consegue impedir o sol de ultrapassar as nuvens espessas de chuva e poeira para esquentar o meu rosto anestesiado pela fria brisa de inverno. De onde vem esse vento que me imobiliza enquanto faz dançar sedutoramente e animadamente as bandeiras?
Escrever é buscar palavras e ideias que estão condensadas no íntimo. É descobrir a raiz do próprio fio de cabelo.
"Recorre frequentemente a uma espécie de filosofia, vagamente intitulada 'pluralismo'. Quem sabe se essa insistência no plural não será uma forma de negar a dualidade sexual? Não se deve permitir que a oposição dos sexos seja uma lei da Natureza; e portanto necessário dissolver os afrontamentos e os paradigmas, pluralizar ao mesmo tempo os sentidos e os sexos: o sentido caminhará para a sua multiplicação, a sua dispersão (na teoria do texto), e o sexo não ficará preso a nenhuma tipologia (não haverá, por exemplo, senão 'várias homossexualidades' (...)" (Roland Barthes).


A chuva encheu de diamantes essa flor-porco-espinho-cor-de-rosa que mora perto da Av. Paulista.


terça-feira, 25 de agosto de 2015

SAUDADE DE KAFKA

Senti solidão.
Naquela sala, com tantos servidores públicos mexendo em seus computadores, digitando números de processos judiciais contendo problemas que demorarão a ser resolvidos ou nunca o serão, naquela cadeira azul acolchoada na qual eu esperava o número do recurso da idosa de 80 anos que está em sua cama aguardando cuidados médicos e o plano de saúde negou a cobertura e a juíza também, naquela tarde de terça-feira naquele prédio chamado Tribunal de Justiça, lá eu senti solidão.
Nenhum dos seres humanos daquela sala faziam parte do meu mundo. Conecto-me com eles por força de um trabalho-missão que exerço por força de um dever assumido de pagar contas por força de um sistema capitalista que faz todos darem sua força para servir a esse sistema. Eu poderia estar lendo um livro de Agatha Christie como o vendedor de milho da esquina. Mas não, eu estava mendigando que um ser humano mande outro ser humano cumprir um contrato pra mandar outro ser humano visitar aquele ser humano de avançada idade e dizer qual a melhor maneira de tratá-la. Se não houvesse esse sistema, era só o ser humano ir lá.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

FRASES COMBUSTÍVEIS

FRASES COMBUSTÍVEIS:

É pecado.

É proibido.

Tu num vai porque é fraca.

Duvido.

Num tem pra quê.

Você não vai conseguir.

Você não tem coragem.

Eat me.



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A LUA É DO RAUL

EXTRA, EXTRA! DESVENDADO O SEGREDO DO UNIVERSO: Cecília Meireles, profeticamente, homenageou Raul Seixas com a Lua Azul! 
"A LUA É DO RAUL

Raio de lua.

Luar.
Luar do ar.
azul.
Roda da lua.
Aro da roda
na tua
rua, Raul!
Roda o luar
na rua
toda
azul.
Roda o aro da lua.
Raul, a lua é tua,
a lua da tua rua!
A lua do aro azul"


- Cecília Meireles no livro "Ou ISTO ou AQUILO"
(foto "Lua Azul de Raul" na Lua Cheia, também chamada de Lua Azul, por ser um fenômeno especial nesta data de 30/7/2015)