Conheci Clarice
Lispector tardiamente, em um livro com coletânea de contos dado por uma colega
de trabalho também de Maceió, também branca, também filha de pais trabalhadores
que proporcionaram alguma condição de vida suficiente pra ter uma infância em
uma casa tranquila e estudar no mesmo colégio que outras pessoas cujos pais já
nasceram ricos e não precisavam se esforçar tanto pra pagar a mensalidade. Ela
a apresentou como sendo uma escritora fabulosa, incrível, maravilhosa, encantadora,
como o título falava, “de cabeceira”. De fato, ao ler alguns de seus contos,
impressionou-me a forma como descrevia os sentimentos e sensações e fazia uma
autópsia da alma humana. Identifiquei-me em várias passagens, numa que falava
sobre um homem a enterrar um cão achado na rua pra espiar a culpa pelo abandono
de seu antigo cão amado, ou outro conto em que refletia sobre um relógio, o
tempo, Sveglia. Uma barata ou um cego vistos por uma dona de casa virariam
páginas de profunda reflexão sobre a vida e existência daquelas personagens
criadas por Clarice. Não imaginava, naquele momento, que eu poderia sentir
alguma antipatia por essa escritora que também passou sua infância em Maceió.
Até escrevi um conto inspirada em sua personagem Aurélia Nascimento, que
nascera ao se despir das maquiagens sobrepostas à sua natureza. “Clarice
Nascimento”, assim a homenagiei. Naquela época, eu descobria e amava Clarice
Lispector.
No entanto, quando
li uma seleção de crônicas de Clarice, surpreendi-me com uma incontrolável
aversão a tudo o que via. Talvez seja justamente meu histórico de vida
semelhante ao de Clarice que me causava tamanha agonia face a sua percepção da
realidade: em uma maestral combinação de palavras, Clarice Lispector traçava o
retrato de uma “classe média” mundial entretida em seus relacionamentos,
universidades, necessidades mesquinhas, pra quem as empregadas despertam
desconforto, os pedintes despertam no máximo caridade, a mulher casada-mãe se
revela como uma obrigação tão natural que faz da escritora uma leitura obrigatória
na literatura brasileira de destaque universal. Tudo isso, que cresci vivendo e
achando único modo de ver o mundo, passaria como louvável não fosse pelo meu
trabalho na Defensoria Pública. Não que na Defensoria Pública seja diferente:
os selecionados por um concurso público são praticamente todos advindos de
criações semelhantes a minha. Mas as histórias que escuto diariamente me
fizeram enxergar um mundo além de Clarice, criada em Maceió, formada em
Direito, frequentadora de casas com esculturas como as de Bruno Giorgi, com
várias empregadas domésticas a servir, andando conduzida por choveres pelos
bairros nobres das principais cidades do mundo.
Seria grande
hipocrisia minha dizer que não sou constituída de Clarice. Apertou-me a
garganta ao ler “As três experiências”, em que ela narra suas três razões de
viver: amar os outros, escrever, criar seus filhos. Também sinto um profundo
amor à vida, à escrita, e aos filhos do mundo e aos que nem ainda tenho. Não
foi só o fato de ter crescido com o cheiro do mar verde de Maceió, uma discreta
semelhança na aparência, e agora o vício do cigarro (orgânico) o que me liga à
escritora naturalizada brasileira: a escrita como modo de expressar a ânsia de
viver e a angústia do vivido também me acompanha desde tenra idade. No entanto,
tenho várias ressalvas quanto aos relatos de Clarice, a ponto de ter terminado
de ler suas crônicas não mais de forma prazerosa, mas quase que discutindo com
a eterna escritora.
A começar por “Por
detrás da devoção”, crônica louvada por Diogo Mainardi, ex-correspondente de
uma revista tendenciosa que sustenta a filosofia de Leviatã como caminho pra a
felicidade. Impressiona-me a maneira discriminatória com que a festejada
escritora trata a empregada doméstica Aninha, descrita como incapaz de entender
um livro seu, e a irônica surpresa porque teria a “renitente” utilizado a
palavra “pueril”. Pior que o asco que me despertou ao ler a crônica, foi quando
vi o comentário daquele escritor da Veja ao se referir à miséria dos
nordestinos: “Trinta e três anos atrás, quando A hora da estrela foi
escrito, ainda vivíamos num apartheid relativamente eficiente.
Os miseráveis ficavam longe de nós, atormentando-nos apenas com o seu
desamparo. De lá pra cá, eles se tornaram bem mais visíveis. Quebram os vidros
dos nossos carros e roubam nossos rádios. E minha sobrinha ouvem a música que
eles ouvem”.
Depois vem a
absurda “Das vantagens de ser bobo”. E digo absurda porque só quem cresceu em
um ambiente cristão como Clarice (e eu!) pode querer extrair alguma vantagem de
ser passado pra trás. “Excesso de amor”, insiste a escritora. Perdoe-me,
Clarice, mas essa de “perdoar setenta vezes sete” é história da carochinha pra
manter os escravos sendo escravos, perdoando seus patrões de todas as
humilhações enquanto espera morrer pra ir ao reino dos céus. Até porque a
escritora “boba” não se revela nada “boba” quando uma senhora entra num táxi e
pede pra que ela ceda a vez e deixe a idosa primeiro em sua casa porque tem um
compromisso, episódio descrito em “Mal-estar de um anjo”. Vitoriosamente,
Clarice nega a “bondade” exigida ao “anjo” e se despe de suas asas, afirmando
que quer ser deixada primeiro e ponto final. A narrativa de Clarice revela,
como o comentarista Joaquim Ferreira dos Santos adjetiva, duas “dondocas” que
se encontram no banco de trás do carro em Copacabana, disputando o trajeto de
um chofer em um dia de chuva. Ser bobo nem é tão bom assim, né, Clarice? Como
diz meu professor Harildo Déda, “gentileza gera gente lesa”.
“O caso da caneta
de ouro” e a valorização de uma caneta porque é feita desse metal (típica
conduta de uma sociedade desprovida de consciência humana e que acumula
riquezas fúteis e desnecessárias), combinada ao “As caridades odiosas” revelam
o tacanho pensamento da classe média: a caneta deve ser objeto de desejo dos
dois filhos (como um dos filhos não quis, despertou o estranhamento da autora e
daí sua crônica), enquanto é incomodo que o “menino a que a sujeira e o sangue
interno davam um tom quente de pele”, humildemente, “poupe a bondade” de
Clarice ao se contentar com só um doce dado de esmola.
Se Clarice não
fosse branca e rica, escrever “Cem anos de perdão” seria uma apologia ao crime,
pois não via problema algum entrar em casas alheias pra retirar uma simples
rosa. Se ela fosse negra e estivesse com fome e entrasse pra pegar um resto de
leite em uma lata jogada no lixo da casa de um dos palacetes que Clarice
entrava com o coração palpitando, com certeza seria presa. E se não tivesse um
Defensor Público, ficaria (fica) uns seis meses com o “coração palpitando” dentro
de uma cela, um coração feito do mesmo sangue vermelho da escritora que
alegremente conta sua experiência como algo que “foi tão bom que simplesmente
passei a roubar rosas”. No Brasil, Clarice, se você fosse negra e pobre
entrando em um palacete pra roubar rosas, não teria nem um único dia de perdão.
E agora, nem se fosse uma jovem adolescente de 16 anos apaixonada por rosas.
Esta seria esmagada como as pitangas que escorriam de suas mãos quando as
apertava no afobamento de roubá-las do pomar da igreja.
Não vou nem me
delongar na agonia que senti quando vi a crônica “Armando Nogueira, futebol e
eu, a coitada”: coitada por que, Clarice? Porque é mulher e não entende de
futebol? Coitado é de Armando que passa o tempo escrevendo sobre o
entretenimento-de-massas-chamado-futebol e não consegue refletir sobre coisas
tão naturais como o sentimento humano! Coitados de nós, homens e mulheres, que
vivemos nessa dicotomia de “coisa de homem” x “coisa de mulher”. Coitada de
você, Clarice, que como milhares de mulheres de sua geração tinha que tomar
calmante pra conter a natureza humana, e precisa que seu filho diferencie
“emoção” de “nervosismo”, como informa na crônica “Lição de filho”, de modo a
poupar o medicamento quase que obrigatório pra as reprimidas mulheres pseudo-burguesas.
Coitada da nossa sociedade que ao invés de refletir sobre as causas dos
problemas sociais fica divagando sobre tantas futilidades.
Perdoe-me, Clarice,
mas não a lerei mais. A não ser pra aprender a escrever, coisa que espero
conseguir um dia. Por enquanto, não sou ninguém pra te criticar. Aliás,
justamente pela minha insignificância, você não terá nem que me perdoar.
Afinal, morta, já se tornou eterna, e quem sou eu pra diminuir o brilho de uma
porta-voz desses valores tão comuns. Eu não sou ninguém. Eu ainda nem nasci.
(comentários ao
livro “Clarice Lispector – Clarice na cabeceira – crônicas”, da editora Rocco)