Nós mulheres não somos objetos para ser categorizados por
tipo e separadas em compartimentos, como se a vida fosse um supermercado de um
alienado como proprietário, que não entende nada da alma humana e
ignorantemente esbraveja com orgulho “essa sessão é das putas, essa fileira é
das castas, o senhor escolhe , depois passa ali no caixa o código de barras e
leva seu produto para casa”.
Assim tem sido permitido ao longo da história do gênero
feminino nos últimos milênios. Todavia,
primeiro que essa história é mal contada, afinal, sempre houve mulheres
dissidentes, que o digam as tachadas como “bruxas” na idade medieval, justo na
época de maior esquizofrenia machista da história europeia, descrita com profunda
semelhança com o atual momento político brasileiro. Segundo, cada mulher é
fruto de sua época, mas também é uma centelha criadora. O problema é que desde
o primeiro respirar nesse planeta deparamos-nos com condicionantes, que nos
moldam em repetições de figuras estigmatizadas, então nos obrigam a escolher.
Toda escolha gera uma perda. Mas quem criou esse “ou isso ou aquilo” e para
quem nós mulheres temos que responder “ser ou não ser”?
Essa classificação das coisas começou lá desde o que se tem
como “filosofia humanista”. Precisava-se de uma mulher para ter como
propriedade, reproduzir e transmitir a propriedade dos militares e
proprietários escravocratas, precisava saber quem era o filho do proprietário,
quem mandaria na propriedade, propriedade, propriedade, coisa, coisa. As que
não se “coisificaram” por vontade própria ou violência não eram “dignas de
ciúmes”, mas somente de ser objeto de satisfação de desejo sexual. Então foram
criados retratos-colagens desses padrões femininos: uma é a Medeia, feiticeira,
revoltada, rebelde e traiçoeira que mata os próprios filhos por ciúmes, a outra
é a Lady Macbeth, instigadora do marido para cometer assassinatos crueis a fim
de ser coroado rei. Semelhança? Ambas insanas.
Pior do que os programas de televisão ou uma revista popular
entre esses “donos de supermercados” fazerem essa classificação dos “produtos
femininos” é quando uma mulher a reproduz. Frases da personagem “Bernarda Alba”,
de Gabriel Garcia Lorca, já foram reiteradamente repetidas não por atrizes, mas
por mulheres alienadas pelos discursos machistas que nos cercam. “Linha e
agulha para as mulheres, chicote e mula para o varão. É como vive quem tem
posses”, “se queres chorar, vais para debaixo da cama, Madalena!”, “não lhes
deve dirigir perguntas. E quando te casares, muito menos. Fala se ele falar e
olha-o quando te olhar. Assim não terás desgosto”.
Ao esquartejar a alma feminina, a humanidade não dimensionava
o quanto iria gradativamente perder ao longo dos séculos, seja em conhecimentos
(em especial a alquimia das plantas), seja em afeto. Hoje temos uma massa de
mulheres “ou”. Uma mulher inteira, do mar, do lar, do ar, do gozar, do
trabalhar, do educar, do sensualizar, do semear só é possível quando se liberta
de exigências de ser ou bela e recatada ou feminista revoltada, ou puta ou do
lar, ou do corpo escultural ou da formosura de excesso de curvas ou da ausência
destas.
Nossa mente é uma linha de medição de um telescópio: se
afastarmos, somos equivalente a no máximo um pontinho de luz; se aproximarmos,
descobrimos um espinho no pé; se focarmos ainda mais, somos um átomo e suas
infinitas divisões. Cada corpo é um universo para ser descoberto, cada
existência, uma história de uma civilização a ser construída. Se nos
aventurarmos a nos descobrir e a ajudar as(os) demais nessa descoberta, se nos
concentrarmos em nos desvencilhar de cada um desses padrões estigmatizadores,
em avançar nas conquistas das mulheres antecessoras que por vezes sacrificaram
até a própria vida em defesa dessa possibilidade de ser livre desses estigmas, já
ocuparemos tempo demais em nossa existência. Chegaremos à liberdade de não
termos mais que proferir votos de “ou”?
Nenhum comentário:
Postar um comentário