domingo, 8 de maio de 2016

TANTO



Há 34 anos, o primeiro desafio: romper a placenta. Sair do confortável invólucro que me cuidava e alimentava para sentir o mundo, o ar, a luz, o toque de peles, o seio de minhã mãe em minha boca, o leite entrando, os cheiros, a temperatura, o leite passando por minha garganta, sendo processado em minha barriga, virando merda, cagar, ser limpada, abraçada, beijada, amada. Há 34 anos faço isso, de forma tão rápida e mecânica que quase pude esquecer quão é incrivelmente bom SER, existir, romper barreiras a cada dia, novas descobertas.
Quanto trabalho deu para segurar a caneta com meus dedos, balbuciar cada palavra e entender seu significado, tantas descrições, tanto mundo, tanto!
Cada movimento dos pés e pernas até a adequada postura para ficar em pé: quanta concentração para me dirigir em uma direção! Que sentido tomar, tantos caminhos, tantos chãos para cair, tanto mundo, tanto!
Quantas frutas para experimentar, temperos, modos de preparo, vegetais, carnes, líquidos, tantos sentar à mesa, tantos assuntos, tanta forma de se passar a salada (pegar com a mão? Não!, dizia meu irmão. Pegar com garfo!).
Tantas lágrimass brotadas dos olhos por tantas dores ou sabores de alegria, vivida ou revivida, tanta saudade, tanto mundo, tanto!
Acordo no meio de muitas palavras, muitos símbolos, muitos seres. Pássaros cantam isoladamente, sem disputar em meus ouvidos barulhos de automóveis ou máquinas. Eu deveria ter ficado lá, só mais uns dias. Mas precisava romper placentas, estações de trem, aviões, passos, estradas, caminhos, até chegar aqui nessa confortável posição com um papel e caneta na mão para me abrir para mim agora e para você que me lê a essa hora. Se for eu, já não serei mais eu que escrevo, com esse limitado conhecimento de mundo, com essas conclusões parciais sobre tudo, pois há tanta coisa para descobrir, tanto mundo, tanto!
Juntar as sementes, gerar vida, juntar as palavras, gerar frases, juntar as fotos, gerar filmes, juntar os temperos, gerar sabores, juntar os corpos, gerar calor. Nesse movimento vital, cíclico, SER até o corpo ser chamado pela morte para se decompor. Esse quando imprevisível impulsiona a viver tanto antes, a experimentar tanto antes, a ver tanto mundo, tanto.
Os sinos tocam ao fundo, musicando junto aos pássaros meu dia, cujo sol já está quase em seu apogeu, lembrando a necessidade do movimento, do sento, do levanto, do fico, do vou, do parto, do descobrir quem sou. Quem era aquela que rompeu a placenta para sair, quem rompeu as barreiras para se construir, para subir e descer escadas, para dormir e sonhar, que sonhos? sonhos de amor e brincadeiras, sempre? Até o amor dói de vez em quando. Ganhar e perder dói. Direcionar dói. A dúvida da aceitação, do acertação. Errar dói, mas é ele que move. O erro que impulsiona os corpos. E a fome, fome de comida, de sol, de lua, de vida, fome de viver novas histórias, de romper tantas placentas, de ser tanta coisa nova, de ser tanta mesma coisa, de conhecer, de ser tanto mundo, tanto!

(escrito em 7 de junho de 2015, Údine, Itália)

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