(Passando na televisão
o show de fim de ano de Roberto Carlos)
TIA: Será que Roberto
Carlos deixou de ter o TOC dele?
MARIA: Tia, o que é
TOC?
TIA: Transtorno
Obsessivo Compulsivo, Maria. É considerado uma doença mental pela Organização Mundial
de Saúde. É uma coisa que todo mundo tem em pouca quantidade, mas quando fica
demais, é de se preocupar...
MARIA: Não entendi...
TIA: Roberto Carlos,
por exemplo, ele mesmo declara que tem TOC. Ele só fala palavras positivas.
Nessa música que ele tá cantando agora, por exemplo, a letra diz “se o bem e o
mal existem, você pode escolher”, mas ele canta “se o bem e o bem existem”.
Quer ver: espera!
MÃE: Tem gente que tem
TOC de várias coisas. Eu mesma tenho uma prima que tinha TOC de só dormir logo depois
de tomar banho. Isso não era nada até ela viajar para o sertão e só ter (pouca)
água na casa durante o dia, aí ela passou vários dias sem dormir, não tinha
jeito, coitada.
TIA: Teve uma atriz
famosa na época da gente que disse ter TOC de ligar e desligar a luz um certo
número de vezes, senão não conseguia sair de casa. Eu mesma já tive uma época
um TOC parecido com Roberto Carlos. Só queria ver o lado bom das coisas.
Acreditava na “lei da atração”, e aí toda vez que vinha um pensamento negativo
de desconfiança, eu afastava pensando positivo. Resultado: ao contrário de
Roberto Carlos, eu me ferrei, me lasquei, “tomei na tampa”, me arrombei, de diversos
lados e maneiras possíveis, justamente nessa época de “pensamento positivo”.
Parece que os urubus adivinham: ali tem um besta que pensa que vai dar certo. E
o mundo tem sempre os dois lados, como já me lembrava a atriz Cristiane Cândido:
“Não podemos divinizar nada nem ninguém”.
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Saudade do TOC. Se eu
conseguisse ver novamente tudo pelo lado positivo, eu só iria ver, por exemplo,
que a cantora baiana que rodou a baiana no palco só falou uma coisa engraçada,
ao chamar a atenção do “papai”, seu marido, que conversava com outra mulher
enquanto ela apresentava seu show. Se eu tivesse TOC, eu não escutaria a parte
que ela dizia: “vou passar a porra nela”, seja de forma raivosa, seja jocosa,
de qualquer forma legitimando o enraizado ciúmes. Eu nem veria ciúmes, aliás,
nem lembraria que o ciúmes foi introduzido na humanidade somente há poucos
milênios, quando os homens militares escravizaram as mulheres livres dos povos
primitivos vencidos nas guerras e disseram que elas seriam sua propriedade. De
tanto repetir essa história, um virou dono do outro (aliás, a mulher geralmente continua
coisa a servir o homem), e a violência pelo ciúmes uma regra tão banal que, se
inexistir em um relacionamento a dois, parece que os conviventes são “de alma
livre” e, o pior, ser de alma livre é algo tão difícil que se torna esquisito. O
normal é mentir fidelidade ou reprimir desejo. O normal é dizer que vai dar
tapa se alguém tentar se meter com sua propriedade. O normal é pegar o telefone
e marcar por mensagem – seguidamente deletada – um encontro escondido.
Se eu conseguisse ver
novamente tudo pelo lado positivo, eu só iria ver que o Juiz Moro está quebrando
um esquema de corrupção. Só veria que advogados bem intencionados defendem a valorização
da verdade gratuita, e talvez veria alguns juízes defendendo que os fins
justificam os meios (já que essa ideia utilitarista introjetada por Maquiavel
tem tanto eco que parece até ser positiva). Veria, de um lado ou do outro, somente
pessoas que querem acabar com a corrupção no Brasil. Só que como não tenho TOC (não esse),
vejo que, como os dois lados não se entendem, para cada condenação mínima de um
corrupto (seja político ou empresário) existem no mínimo 1.234.567 páginas de
teses para defendê-lo ou anular o procedimento. Para cada mês de condenação,
existem anos e anos de perdão. As trocas no Brasil são primitivas:
toma-lá-dá-cá. E isso é positivo-negativo-negativo-negativo. Depois de na
ditadura militar no Brasil termos criado a “tortura à brasileira”, agora nos
eternizaremos como o país da “ética da mentira”. Investigar como os alemães
fizeram para apurar os crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial, nem pensar.
O que os ditadores brasileiros ganhariam? Nada! Então deixa pra lá, não sabemos
investigar mesmo! Anistia e perdão para os torturadores e corruptos! E só são
condenados se eles quiserem, nos termos deles! Se eu tivesse TOC, continuaria a cantar: salve,
salve, pátria amada.
Se eu tivesse TOC, eu
não leria a notícia de que uma criança morreu na sua noite de núpcias aos 8
anos num país mulçumano, nem que o Brasil é recordista de casamentos de
meninas, crianças e recém adolescentes, nem que há pessoas na internet que se
manifestam favoráveis a políticos esquizofrênicos a defender valores que
absolutamente só levam à tristeza da humanidade e, pior, tem gente que
compactua, e, pior, tem gente que além de incentivar a prática de estupro ainda
verbaliza isso seriamente e ainda ensina como fazer.
Se eu tivesse TOC, eu
não tentaria entender que diaxo de verdade é essa que todo mundo “roda a porra”
defendendo a sua, mas “se você tira a mentira vital de um homem comum, tira-lhe
ao mesmo tempo a felicidade” (Henrik Ibsen).
Saudade do TOC.