terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

DÉJÀ VU

Eu pensei que iria morrer. Aliás, ali, eu já estava morta: era somente uma partícula pulsante pulante no meio de um mundaréu de gente.
E se todas as pessoas do mundo saíssem de suas casas para se espremer em uma estreita rua ao lado do mar, seguindo um único automóvel, um pequenino caminhão com caixas que reproduzem o som a uma certa distância, distância que propaga este som em ecos? Não mais nem conseguia ouvir o caminhão, vulgo trio elétrico: um déjà vu de músicas escutadas em carnavais passados e cantadas pelas pessoas que pulavam, pulavam, pulavam.
Meus pés: eu não conseguia compreender em que momento da vida eu me desconectei deles para sobreviver. Não mais doíam, pois praticamente eu não mais os tocava no chão. Nem força eu fazia: deixava meu corpo ser levado por corpos fortes e altos, muito maiores e mais pesados que eu, eu que era um nada, um ser que não iria desaparecer do mundo, afinal, que mundo? O mundo não existia, só havia uma música ecoada nos refrões repetidos e pés saltitantes que se esmagavam mutuamente. 
"Play som, play som, já viu é déjà vu", parecia estar lá longe trovejando Marco Antônio, em Júlio César de Sheakespeare, mas não: era só mais um carnaval em Salvador, Bahia, Brasil.



(Escrito em 31/1/2016, após o "Furdunço" com Baiana System de Ondina à Barra).

O caso do vivo-morto ou do morto-vivo

Leandro encontrou o poste. Seu recém-comprado automóvel da marca importada Bossaismarcadamentewrapped atingiu a velocidade de 120km/h naquela avenida do bairro do Rio Vermelho, após a festa de lançamento de seu produto, uma personagem, em uma festa d’uma agência de publicidade. Por sorte, Leandro era de uma família abastada e foi rapidamente levado para o melhor hospital da cidade, operado pelo Melhor Neurocirurgião da Região, quiçá um dos melhores do Brasil. 70% de chances de sobreviver sem sequelas. Todavia, por azar, o Estagiário de Enfermagem responsável por sua UTI estava entretido no seu aparelho celular com o mais novo hit do momento, Léo Trololó, um músico talentoso que, gago, cantava e falava sobre cagar, peidar e tra-traquinagens, com uma peruca de cabelo toda em finas tranças loiras e compridas, um chapéu modelo fedora feminino, coberto de tecido jeans com fita pink alaranjada no meio.
O Estagiário de Enfermagem tinha a obrigação de reconectar o tubo respiratório para o ar passar. Como não conseguiu encaixá-lo, enrolou com a fita adesiva e voltou para o seu celular, para continuar a ver e a se divertir com os vídeos do engraçadíssimo Léo Trololó. No dia seguinte, Leandro foi encontrado morto pelo Neurocirugião. Faltou-lhe oxigênio no cérebro. Ao questionar o Presidente do Hospital, este ordenou manter segredo sobre a morte de Leandro para a família, porque por azar Leandro era de uma família abastada e esta poderia pagar mais alguns dias de UTI, quando Leandro enfim pioraria e seria submetido a mais uma cirurgia, sendo nesta, finalmente, que Leandro seria dado por morto. O Neurocirurgião se negou, mas assim foi feito. Nos sete dias que permaneceu na UTI, o Estagiário de Enfermagem não conseguia largar o celular. Era um dos responsáveis pelos mais de 3 milhões, novecentos e oitenta e sete mil, seiscentos e cinquenta e quatro curtidas nesse explosivo fenômeno nas redes sociais. Léo Trololó vendia a mais nova cerveja popular em um comercial televisivo. Em pouquíssimos dias, seus vídeos alastraram-se viralmente: seu modo único de interpretar seduzia a todos.
Leandro foi finalmente enterrado. Em seu velório, apenas familiares e amigos próximos. Dias antes, Leandro assinara um contrato milionário com uma agência de publicidade. Comprara seu primeiro carro, no qual teria tirado vários selfies ao redor da cidade e feito vários vídeos, sempre sorridente, dizendo algo engraçado, algo que o povo gostava de ouvir. Leandro havia criado uma personagem perfeita, reconheceu a agência de publicidade. Ofereceu-lhe de cara dois milhões para fazer o comercial de uma cerveja. “Uma cerveja?”, perguntou o até então compositor, instrumencista, cantor e escritor refinado, cansado do ostracismo e da total ausência de público. “Sim, uma cerveja feita com milho ou trigo transgênico. Vai topar?”, respondeu o publicitário. Leandro hesitou. Sempre estudou para não ter que se associar a nada que ele combatesse. Sentia-se responsável por aprender e transmitir uma tradição artística. (“Mas eu critico exatamente isso, essa exposição desavergonhada na grande mídia, essa vinculação com produtos errados”, pensou. “Vou mesmo vender meu personagem e me eternizar como ‘Léo Trololó’?”).
Sim.
Arrependido, Leandro saiu da festa de lançamento de sua personagem “Léo Trololó” e acelerou com seu carro novo o máximo que conseguiu em uma linha reta. Leandro encontrou o poste.