Primeira pergunta: um voto proferido por um Deputado Federal, que é um servidor público (agente político), deve conter os elementos do ato administrativo? - Lembrando que estes estão previstos no art. 2º da Lei 4.717/65 (Lei da Ação Popular – LAP), que determina serem nulos os atos nos casos de a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade.
Segunda pergunta: ao ser
manifestada uma vontade real, esta deve ter sua validade analisada em um “ato
administrativo-jurídico-político”, ou não se aplica aos atos dos servidores públicos
do Legislativo a teoria da vinculação aos motivos determinantes?
Terceira pergunta: um
"ato político" deve ser considerado "ato jurídico" ou um
"ato-fato jurídico", ou seja: a validade da vontade humana é
relevante?
Inicialmente, sobre a
teoria da vinculação aos motivos determinantes, esclarece Celso Antônio
Bandeira de Mello:
"De
acordo com esta teoria, os motivos que determinaram a vontade do agente, isto
é, os fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato.
Sendo assim, a invocação dos “motivos de fato” falso, inexistentes ou
incorretamente qualificados vicia o ato mesmo quando, conforme já se disse, a
lei não haja estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática
do ato. Uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda
quando a lei não haja expressamente imposto essa obrigação de enunciá-los, o
ato será válido se estes realmente ocorreram e o justificavam." (MELLO, 2009,
p. 398).
Assim, mesmo quando não
seja requisito do ato administrativo sua motivação, quando esta for publicizada,
a análise de validade do ato administrativo perpassa pela verificação de sua
compatibilidade com os requisitos legais, dentre estes, a congruência entre a
vontade manifesta e o resultado do ato. Vejamos:
ADMINISTRATIVO.
ATO ADMINISTRATIVO. VINCULAÇÃO AOS MOTIVOS DETERMINANTES. INCONGRUÊNCIA.
ANÁLISE PELO JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. DANO MORAL. SÚMULA 7/STJ.
1.
Os atos discricionários da Administração Pública estão sujeitos ao controle
pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial, cabendo observar que
os motivos embasadores dos atos administrativos vinculam a Administração,
conferindo-lhes legitimidade e validade.
2.
"Consoante a teoria dos motivos determinantes, o administrador vincula-se
aos motivos elencados para a prática do ato administrativo. Nesse contexto, há
vício de legalidade não apenas quando inexistentes ou inverídicos os motivos
suscitados pela administração, mas também quando verificada a falta de
congruência entre as razões explicitadas no ato e o resultado nele
contido" (MS 15.290/DF, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, julgado em
26.10.2011, DJe 14.11.2011).
Embora os Deputados
Federais não precisassem fundamentar seu voto na plenária da votação para o
Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff ocorrido no dia 17 de abril de 2018,
eles o fizeram. Numa votação que comportava somente o “sim” ou o “não”, todos
os Deputados Federais (exceto os sete que se abstiveram) revelaram o motivo de
seu voto. Mesmo que não conste no relatório do então Presidente da Câmara dos
Deputados, o fato é que foi televisionado e visto simultaneamente em todo o
mundo. Maior publicidade ao ato público de votação não poderia haver.
Voltemos à primeira
pergunta. Não há previsão constitucional ou legal, ainda que exemplificativa,
que diferencie o ato administrativo estrito do ato político. Há inclusive
várias teorias criadas na época da Ditadura Militar no Brasil, fazendo inúmeras
classificações para criar privilégios (além dos já previstos
constitucionalmente) aos “agentes políticos”, porém todos os agentes políticos,
seja os investidos em um cargo público decorrente de escolha por voto popular,
ou por concurso público, ou ainda aqueles que ocupam uma função pública
decorrente das tradicionais e constitucionais indicações políticas, todos devem respeito à supremacia do
interesse público.
Mas o que é interesse
público? É fácil responder, só procurar nos primeiros artigos da Constituição
Federal. Somente para lembrar os que foram escancaradamente violados, temos: a
soberania popular (art. 1º, I), os valores sociais do trabalho (art. 1º, II), a
vedação ao preconceito e qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV), a
prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II), o combate à tortura ou
tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), a função social da
propriedade (art. 5º, XXIII ), a valorização da pequena propriedade rural (art.
5º, XXVI). Vamos ficar pelos primeiros em ordem de inscrição na Constituição,
porque senão cansaria enumerar todos os artigos violados. Talvez analisando
voto a voto para identificar todos com mais clareza.
Desta forma, utilizando a
"teoria dos motivos determinantes" do ato administrativo, os votos
que não foram fundamentados em razões previstas na Constituição Federal devem
ser anulados, afinal não foi positivada a defesa do interesse da própria
família em detrimento dos interesses do povo brasileiro, dentre estes, a
soberania do voto popular. O ato de um agente político é um ato administrativo
e, como tal, deve ter preenchido todos os requisitos legais, dentre eles o de
atender ao interesse público, o que restou nítido inexistir na motivação
declarada pela maioria dos Deputados a favor do impeachment.
Uns dirão que não cabe
revisão jurídica dos atos dos membros do Legislativo, porque seriam
considerados “atos políticos” e não “atos administrativos ‘strictu senso’”.
Ainda assim, se pergunta: seriam ao menos considerados atos jurídicos, e, como
tais, caberia ao Supremo Tribunal Federal analisar a coerência com a
Constituição Federal?
Seguindo a teoria do fato
jurídico de Pontes de Miranda, o voto de cada um dos Deputados Federais, por
ter entrado no mundo jurídico, é um fato jurídico, independente de sua
licitude. De acordo com sua classificação, os atos que decorrem de uma ação
humana ou são tidos como atos jurídicos, quando o fato decorrer de uma vontade,
ou atos-fatos, quando a vontade não estiver presente.
“Se
esvaziamos os atos humanos de vontade (= se dela abstraímos = se a pomos entre
parênteses), se não a levamos em conta para a juridicização, o actus é um
factum, e como tal é que entra no mundo jurídico. É de tratar-se, então, como
aqueles fatos que, de ordinário, ou por sua natureza, nada têm com a vontade do
homem (MIRANDA, 1999, p. 422).
Assim, conclui-se que, como a vontade humana é
inerente ao voto, o voto de um membro do Congresso Nacional é um ato jurídico. Em
qualquer ato jurídico, a vontade deve estar em sintonia com a Constituição
Federal, sob pena de não atender ao requisito da validade. Pode existir e até
produzir efeitos, mas é ilícito, contrário ao Direito. Há regras do jogo que
precisam ser jogadas, até porque qual seria a legitimidade de um ato praticado
por um servidor público, agente político ou não, que não tenha como fundamento
de validade o interesse público?
Resta saber se os
representantes do legislativo têm carta branca para fazer o que quiserem sob o
argumento de ser um ato político. É como se estivesem eternamente em um poder
constituinte originário. O mandato seria uma procuração com poderes especiais
ilimitados?
Continuamos criando
teorias jurídicas para negar a realidade. Contra fatos, só há argumentos.
Afinal, não é porque não consta do relatório as declarações prestadas pelos
parlamentares que estas não existiram e todos viram e ouviram a fundamentação
dos votos dos deputados. E se o voto de um deputado não é um ato que possa ser
analisado juridicamente porque é um ato político, não vislumbramos qualquer
serventia a ser dada aos "freios e contrapesos" inerentes à separação
de poderes, ensinados nos livros de Direito Constitucional.
A fisionomia de
indiferença de alguns Deputados diante daquele circo armado lembrou o cinismo
brilhante do ator e diretor José Mojica Marins ao interpretar Zé do Caixão em
"Encarnação do Demônio". Seus filmes foram proibidos na época da
ditadura militar no Brasil, possivelmente porque revela a naturalidade com que
alguns homens torturam e matam por prazer. Os que o fizeram "em nome da
lei", e, pior, "lei de Deus" na época da ditadura, acabaram
sendo louvados em um voto que teve até fogo de artifício para comemorar. É para
ter medo de viver nesse país se nada for feito contra esse posicionamento público
de um servidor público cujo salário é pago com dinheiro público. A realidade é
muito pior que a ficção. A propósito, o personagem de Zé do Caixão mostra como
era uma sessão de tortura "a la ditadura brasileira", para quem tiver
curiosidade e quiser entender a gravidade de ter um ícone tenebroso da ditadura
militar sendo reverenciado por políticos que se dizem representantes do povo. "Nem
os mortos, nem a própria loucura me impedirão de gerar meu filho", assim
concluiu Zé do Caixão naquele filme – possivelmente a mesma fala do torturador ao se
ver sendo louvado no voto de um dos mais sórdidos e macabros membros do
Congresso Nacional.
Está na hora de
começarmos as petições jurídicas contra essa cena grotesca e brincadeira de mau
gosto comandada por um sádico como presidente. Embora eu não acredite que o Direito
tenha alguma valia para defesa de direitos humanos nesse país, vale sempre à
pena argumentar, só pra não deixar passar sem luta.
REFERÊNCIAS:
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo.
26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado
de Direito Privado. Tomo II. Campinas: Bookseller, 1999.